Bruno Montarroyos
28/02/2022
Você já parou para pensar no quanto é importante confiarmos uns nos outros em nossa sociedade? Como? Você não confia nas pessoas? Isso não é verdade! Você confia sim, só talvez não tenha percebido o quanto confia.
Se você dirige ou usa qualquer meio de transporte motorizado, por exemplo, está confiando em todos os outros motoristas e pedestres. Imagine se você não confiasse que cada um se manterá em sua própria mão. Se você acreditasse que qualquer outro motorista iria invadir a contramão e colidir de frente com o veículo que você está, você estaria mesmo nesse veículo? Claro que não. Mas você nem pensa nisso, o que mostra que além de confiar ainda confia cegamente. Confia que os pedestres não ficarão tentando pular na frente do seu veículo em movimento. Confia que o seu veículo não explodirá de uma hora para outra. Ou seja, você confia em quem projetou, fabricou, cuidou da manutenção ou abasteceu o veículo em que você está se locomovendo.
Se você trabalha, então passa o mês inteiro se esforçando na confiança de que será pago no final do mês. Você come confiando nas pessoas que participaram do processo de produção do seu alimento. Você não vive esperando encontrar veneno ali toda hora que vai comer. Você compra um aparelho doméstico e confia que ele vai funcionar e que será seguro você usar, isso porque você está confiando nas pessoas que estiveram envolvidas na produção daquele bem.
Ao tomar qualquer medicamento, você confia no médico que receitou (ou na pessoa que indicou, infelizmente acontece), confia em quem fabricou, em quem descobriu a fórmula e as interações, em quem informou os limites dos efeitos colaterais.
Eu poderia escrever um livro inteirinho só citando exemplos que demonstram que a maior parte do nosso tempo estamos confiando sim, nas outras pessoas, do nosso presente e do passado também, no conhecimento acumulado em soluções conhecidas.
Se isso fosse diferente, se começássemos a desconfiar das outras pessoas em tudo, viveríamos o caos, cada um por si e contra todos e rapidinho seríamos extintos como humanidade, quiçá como planeta inteirinho.
Logo, não faz sentido adotar um comportamento arrogante de não confiança no outro. A nossa constante evolução como sociedade depende da humildade de reconhecer que somos limitados, que precisamos uns dos outros para viver melhor, que podemos confiar uns nos outros. Podemos confiar nas conclusões que outras pessoas, que se dedicaram a estudos de elementos específicos, chegaram nas áreas que escolheram atuar.
Ao reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas, estarei mais protegido de seguir por caminhos que nos atrasam como sociedade. Eu direi: Eu apanhei quando era criança e mesmo acreditando até hoje que isso estava correto, confio nas pessoas que se dedicaram a estudar isso e descobriram que essa violência mais prejudica do que ajuda (alguém ainda acredita que ajuda). Mesmo não conseguindo enxergar em mim mesmo sequelas disso, eu confio nos estudos e humildemente reconheço a minha limitação nessa área, aceitando que superamos isso e não devemos repetir esse comportamento de bater em crianças.
Quando eu reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas eu direi: Eu não entendo muito bem como conseguiram fazer uma vacina tão mais rápido do que as outras que já existiam, mas eu confio nas pessoas que estudaram isso e que estão dizendo que é segura. Afinal, eu viajei ou viajaria de avião sem questionar tanto como antigamente, de burro, levava tanto mais tempo para chegar de um lugar ao outro. Vou tomar a vacina e vou dar aos meus filhos, porque reconheço a minha limitação nessa área e confio nas pessoas que estudam isso. Não preciso saber sobre tudo! Ninguém saberá sobre tudo. Basta confiarmos uns nos outros.
No momento em que eu reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas eu direi: Os três poderes existem para que nenhum poder abuse de sua autoridade. Por isso um presidente, governador ou prefeito não pode ter em sua função todo o poder. Eles precisam de um legislativo e um judiciário igualmente fortes, para que nenhuma das partes se sobressaia de modo a promover um governo tirânico. Eu confio que, apesar dos desvios que existem em toda a relação humana, esses poderes estarão fazendo o seu trabalho e promoverão um equilíbrio saudável ou, no mínimo, menos prejudicial do que o que existiria em sua ausência.
Nem tudo é perfeito. Nunca será! Mas podemos dizer que estamos evoluindo sim, como sociedade. Está cada vez mais difícil errar escondido, seja no trânsito, na ciência, na política, em casa ou na praça. Está cada vez mais difícil para um país declarar guerra contra um outro e encontrar apoio para isso. Há cada vez mais resistência e sanções. Está cada vez mais difícil exercer violência contra negros, mulheres, crianças, idosos ou queers sem enfrentar uma grande resistência da sociedade. Erros devem ser apontados e tratados, não materializados em pessoas (essa pessoa é certa e aquela é errada), mas com foco em ações e comportamentos (esse comportamento está inadequado, aquela ação está errada).
Desconfie (isso sim) quando alguém quiser induzir você a perder a confiança em tudo e em todos, a enxergar conspirações e maldade em tudo o que é lado, menos do lado de quem está te contando a história. Essa é uma estratégia antiga para buscar seguidores que se tornem reféns. Se chego para você e começo a dizer pra você deixar de confiar na ciência (não tome vacina, ser gay é escolha, negros tem igualdade de condições), na política (o partido x é corrupto, a direita é opressora, a esquerda é perigosa), no judiciário (O STF é comprado, o TSE manipula as urnas), no legislativo (O congresso é um bando de ladrão, o senado está contra o povo), nas outras esferas de poder (o governador está mentindo, o prefeito está enganando vocês), enfim, se digo para você desconfiar de tudo e de todos, te torno refém de confiar apenas em mim. E aí tudo o que eu disser vira verdade. E aí eu me torno a ciência, a política, o legislativo, o executivo, o judiciário, a única autoridade para dizer o certo e o errado nas artes, na educação, em tudo. Isso se chama tirania, autoritarismo e a estratégia para alcançar essa condição já em bem conhecida.
A experiência nos mostra que vale a pena confiarmos uns nos outros. Que vale tanto a pena que em geral exercemos essa confiança de forma quase cega na maioria das vezes. Confiamos tanto uns nos outros que nos locomovemos em veículos motorizados e até voando, tomamos medicamentos que não entendemos bem como funcionam, nos submetemos a cirurgias e tratamentos, nos alimentamos de uma diversidade de coisas, trabalhamos para só receber depois, pagamos para só receber depois o bem, casamos, separamos.
E em geral dá tão certo confiar que quando essa confiança é quebrada nós queremos reparações. Seja nos acidentes de trânsito, seja quando um remédio dá errado ou uma cirurgia vai mal, seja quando o que comemos nos deixa com aquela dor ou infecção, isso tudo está tão fora do normal que buscamos reparações. Isso porque sabemos que vale a pena, sim, confiar. Confiamos, inclusive, que quando as coisas derem errado, será possível buscar reparações.
Se um motorista infringir as leis de trânsito e isso prejudicar alguém, sabemos que isso pode ser tratado, que há instâncias para lidar com isso. Se um médico for negligente ou o motorista do ônibus que tomei, será possível recorrer e buscar reparações.
Podemos confiar uns nos outros, confiar nas instituições criadas ao longo da história. Ao mesmo tempo que podemos continuar tratando as ações e comportamentos errados e reconhecendo e valorizando as ações e comportamentos acertados Ao mesmo tempo em que identificamos as estruturas que não mais atendem às nossas necessidades e lutamos para atualizá-las, substituí-las ou, simplesmente, eliminá-las.
Quanto mais conseguirmos buscar uma atitude humilde, que reconhece a nossa própria limitação, ao lado de uma atitude de confiarmos uns nos outros, mais evoluiremos. Quanto mais evitarmos de generalizar erros e acertos (O congresso é mau, o presidente X é bom, o judiciário é corrupto, todo político é ladrão, o partido Y é santo), mais evoluiremos. Quanto mais buscarmos focar em comportamentos e ações (Essa atitude X do Presidente Y foi um erro por causa disso, não concordo com essa decisão do STF porque prejudica isso e aquilo, foi muito acertado esse comportamento do Governador Z, apesar de o meu candidato estar na oposição), mais evoluiremos como humanidade.
Sim, o mundo hoje é melhor do que antes e continuaremos melhorando. Somos melhores como humanidade hoje do que no passado e continuaremos evoluindo. E se temos mais notícias ruins do que boas é simplesmente por causa da seleção que é feita. Enquanto um motorista raivoso saiu do seu carro, espancou um outro motorista e isso saiu em todos os jornais do mundo inteiro, centenas de outros motoristas estavam no mesmo local fazendo a coisa certa e isso não vai ser noticiado em nenhuma mídia. O mundo não está pior, apenas os nossos olhos.