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Que bom você por aqui. Sinta-se em casa. Espero que as nossas humanidades se encontrem aqui. Neste blog você encontrará textos sobre assuntos variados que traduzam com palavras simples e críticas esses caminhos e descaminhos que a humanidade percorre na estrada da vida, expressos através de um desejo profundo e intimamente meu: Quero ser mais humano: menos hipocrisia, menos espiritualidade alienante, menos moralidade vazia, muito mais HUMANO."

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Quanto mais confiarmos, mais evoluiremos

Bruno Montarroyos

28/02/2022


Você já parou para pensar no quanto é importante confiarmos uns nos outros em nossa sociedade? Como? Você não confia nas pessoas? Isso não é verdade! Você confia sim, só talvez não tenha percebido o quanto confia.

Se você dirige ou usa qualquer meio de transporte motorizado, por exemplo, está confiando em todos os outros motoristas e pedestres. Imagine se você não confiasse que cada um se manterá em sua própria mão. Se você acreditasse que qualquer outro motorista iria invadir a contramão e colidir de frente com o veículo que você está, você estaria mesmo nesse veículo? Claro que não. Mas você nem pensa nisso, o que mostra que além de confiar ainda confia cegamente. Confia que os pedestres não ficarão tentando pular na frente do seu veículo em movimento. Confia que o seu veículo não explodirá de uma hora para outra. Ou seja, você confia em quem projetou, fabricou, cuidou da manutenção ou abasteceu o veículo em que você está se locomovendo.

Se você trabalha, então passa o mês inteiro se esforçando na confiança de que será pago no final do mês. Você come confiando nas pessoas que participaram do processo de produção do seu alimento. Você não vive esperando encontrar veneno ali toda hora que vai comer. Você compra um aparelho doméstico e confia que ele vai funcionar e que será seguro você usar, isso porque você está confiando nas pessoas que estiveram envolvidas na produção daquele bem.

Ao tomar qualquer medicamento, você confia no médico que receitou (ou na pessoa que indicou, infelizmente acontece), confia em quem fabricou, em quem descobriu a fórmula e as interações, em quem informou os limites dos efeitos colaterais.

Eu poderia escrever um livro inteirinho só citando exemplos que demonstram que a maior parte do nosso tempo estamos confiando sim, nas outras pessoas, do nosso presente e do passado também, no conhecimento acumulado em soluções conhecidas.

Se isso fosse diferente, se começássemos a desconfiar das outras pessoas em tudo, viveríamos o caos, cada um por si e contra todos e rapidinho seríamos extintos como humanidade, quiçá como planeta inteirinho.

Logo, não faz sentido adotar um comportamento arrogante de não confiança no outro. A nossa constante evolução como sociedade depende da humildade de reconhecer que somos limitados, que precisamos uns dos outros para viver melhor, que podemos confiar uns nos outros. Podemos confiar nas conclusões que outras pessoas, que se dedicaram a estudos de elementos específicos, chegaram nas áreas que escolheram atuar.

Ao reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas, estarei mais protegido de seguir por caminhos que nos atrasam como sociedade. Eu direi: Eu apanhei quando era criança e mesmo acreditando até hoje que isso estava correto, confio nas pessoas que se dedicaram a estudar isso e descobriram que essa violência mais prejudica do que ajuda (alguém ainda acredita que ajuda). Mesmo não conseguindo enxergar em mim mesmo sequelas disso, eu confio nos estudos e humildemente reconheço a minha limitação nessa área, aceitando que superamos isso e não devemos repetir esse comportamento de bater em crianças.

Quando eu reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas eu direi: Eu não entendo muito bem como conseguiram fazer uma vacina tão mais rápido do que as outras que já existiam, mas eu confio nas pessoas que estudaram isso e que estão dizendo que é segura. Afinal, eu viajei ou viajaria de avião sem questionar tanto como antigamente, de burro, levava tanto mais tempo para chegar de um lugar ao outro. Vou tomar a vacina e vou dar aos meus filhos, porque reconheço a minha limitação nessa área e confio nas pessoas que estudam isso. Não preciso saber sobre tudo! Ninguém saberá sobre tudo. Basta confiarmos uns nos outros.

No momento em que eu reconhecer humildemente a minha limitação e entender que posso confiar nas pessoas eu direi: Os três poderes existem para que nenhum poder abuse de sua autoridade. Por isso um presidente, governador ou prefeito não pode ter em sua função todo o poder. Eles precisam de um legislativo e um judiciário igualmente fortes, para que nenhuma das partes se sobressaia de modo a promover um governo tirânico. Eu confio que, apesar dos desvios que existem em toda a relação humana, esses poderes estarão fazendo o seu trabalho e promoverão um equilíbrio saudável ou, no mínimo, menos prejudicial do que o que existiria em sua ausência.

Nem tudo é perfeito. Nunca será! Mas podemos dizer que estamos evoluindo sim, como sociedade. Está cada vez mais difícil errar escondido, seja no trânsito, na ciência, na política, em casa ou na praça. Está cada vez mais difícil para um país declarar guerra contra um outro e encontrar apoio para isso. Há cada vez mais resistência e sanções. Está cada vez mais difícil exercer violência contra negros, mulheres, crianças, idosos ou queers sem enfrentar uma grande resistência da sociedade. Erros devem ser apontados e tratados, não materializados em pessoas (essa pessoa é certa e aquela é errada), mas com foco em ações e comportamentos (esse comportamento está inadequado, aquela ação está errada).

Desconfie (isso sim) quando alguém quiser induzir você a perder a confiança em tudo e em todos, a enxergar conspirações e maldade em tudo o que é lado, menos do lado de quem está te contando a história. Essa é uma estratégia antiga para buscar seguidores que se tornem reféns. Se chego para você e começo a dizer pra você deixar de confiar na ciência (não tome vacina, ser gay é escolha, negros tem igualdade de condições), na política (o partido x é corrupto, a direita é opressora, a esquerda é perigosa), no judiciário (O STF é comprado, o TSE manipula as urnas), no legislativo (O congresso é um bando de ladrão, o senado está contra o povo), nas outras esferas de poder (o governador está mentindo, o prefeito está enganando vocês), enfim, se digo para você desconfiar de tudo e de todos, te torno refém de confiar apenas em mim. E aí tudo o que eu disser vira verdade. E aí eu me torno a ciência, a política, o legislativo, o executivo, o judiciário, a única autoridade para dizer o certo e o errado nas artes, na educação, em tudo. Isso se chama tirania, autoritarismo e a estratégia para alcançar essa condição já em bem conhecida.

A experiência nos mostra que vale a pena confiarmos uns nos outros. Que vale tanto a pena que em geral exercemos essa confiança de forma quase cega na maioria das vezes. Confiamos tanto uns nos outros que nos locomovemos em veículos motorizados e até voando, tomamos medicamentos que não entendemos bem como funcionam, nos submetemos a cirurgias e tratamentos, nos alimentamos de uma diversidade de coisas, trabalhamos para só receber depois, pagamos para só receber depois o bem, casamos, separamos.

E em geral dá tão certo confiar que quando essa confiança é quebrada nós queremos reparações. Seja nos acidentes de trânsito, seja quando um remédio dá errado ou uma cirurgia vai mal, seja quando o que comemos nos deixa com aquela dor ou infecção, isso tudo está tão fora do normal que buscamos reparações. Isso porque sabemos que vale a pena, sim, confiar. Confiamos, inclusive, que quando as coisas derem errado, será possível buscar reparações.

Se um motorista infringir as leis de trânsito e isso prejudicar alguém, sabemos que isso pode ser tratado, que há instâncias para lidar com isso. Se um médico for negligente ou o motorista do ônibus que tomei, será possível recorrer e buscar reparações.

Podemos confiar uns nos outros, confiar nas instituições criadas ao longo da história. Ao mesmo tempo que podemos continuar tratando as ações e comportamentos errados e reconhecendo e valorizando as ações e comportamentos acertados Ao mesmo tempo em que identificamos as estruturas que não mais atendem às nossas necessidades e lutamos para atualizá-las, substituí-las ou, simplesmente, eliminá-las.

Quanto mais conseguirmos buscar uma atitude humilde, que reconhece a nossa própria limitação, ao lado de uma atitude de confiarmos uns nos outros, mais evoluiremos. Quanto mais evitarmos de generalizar erros e acertos (O congresso é mau, o presidente X é bom, o judiciário é corrupto, todo político é ladrão, o partido Y é santo), mais evoluiremos. Quanto mais buscarmos focar em comportamentos e ações (Essa atitude X do Presidente Y foi um erro por causa disso, não concordo com essa decisão do STF porque prejudica isso e aquilo, foi muito acertado esse comportamento do Governador Z, apesar de o meu candidato estar na oposição), mais evoluiremos como humanidade.

Sim, o mundo hoje é melhor do que antes e continuaremos melhorando. Somos melhores como humanidade hoje do que no passado e continuaremos evoluindo. E se temos mais notícias ruins do que boas é simplesmente por causa da seleção que é feita. Enquanto um motorista raivoso saiu do seu carro, espancou um outro motorista e isso saiu em todos os jornais do mundo inteiro, centenas de outros motoristas estavam no mesmo local fazendo a coisa certa e isso não vai ser noticiado em nenhuma mídia. O mundo não está pior, apenas os nossos olhos.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Morte aos Verdes

Por Bruno Montarroyos

Era uma sociedade diferente aquela. Pessoas em filas para inúmeras pistas de corrida. Basicamente dois tipos de pessoas, as verdes e as azuis.

Os seres humanos azuis eram belíssimos, vistosos, fortes, dava gosto de se ver. Já os verdes, só de olhar para eles, muitas vezes a reação primeira era o medo.

A atividade diária de cada um era bem clara: Correr. Sim, correr. A pista não era em metros, mas em horas. Uma pista que tinha exatamente o tamanho de oito horas e não importava a velocidade, a chegada estaria a oito horas de distância da largada.

Bem próximo à chegada havia algumas pessoas elegantes bloqueando a passagem até a linha de chegada. As regras diziam que era necessário pedir com delicadeza, educação, calma, tranquilidade, paz, determinação e fé para que as pessoas elegantes saíssem do caminho. Se o pedido fosse conforme previsto nas regras, então as pessoas elegantes liberariam o caminho até a linha de chegada. Bem simples!

A qualidade de vida de cada pessoa ia sendo determinada pela quantidade de vezes que elas conseguiam cruzar a linha de chegada sem infringir as regras. Acesso a comida, a água, a lazer, à liberdade, etc., tudo era determinado pelas premiações ou penalidades. Infringir as regras era passível de duras penas. Tentar agredir ou empurrar as pessoas elegantes que bloqueiam a linha de chegada tinha como resultado espancamento, restrição da liberdade, proibição de acesso a água e comida, dentre outras.

Desde antes de nascer, ainda na barriga da mãe, ou mesmo recém-nascidos, todos participavam desta atividade até o final da juventude. As mães precisavam carregar os seus filhos enquanto eles mesmos não pudessem correr.

As pistas eram sempre duplas, um lado verde e um azul, mas quem corria de um dos lados não conseguia ter a visão do outro.

Ao mesmo tempo em que era liberado um verde para iniciar a corrida, era liberado um azul.
A multidão de verdes e azuis que esperavam a sua própria vez de correr podiam acompanhar uma cobertura sensacional pelos telões.

Mas os telões só mostravam na cobertura o caminho completo dos azuis. O único trecho do caminho dos verdes que aparecia na cobertura dos telões era a chegada. Bem, isso não seria um problema, porque era só prestar atenção ao percurso dos azuis, da largada à chegada e imaginar que o dos verdes seria igual, apenas mudando a cor.

As chegadas eram, de fato, iguais, a verde e a azul. Todavia, havia diferenças no caminho.
A pista dos azuis era perfeitamente conservada. Ao longo do caminho havia água disponível, e até paradas para refeições e descanso. Além disso havia uma torcida gritando palavras de motivação e até ajudando quando preciso em alguma dificuldade.

A pista dos verdes era cheia de buracos e armadilhas. Não havia água, nem refeições ou descanso no caminho, pelo contrário, havia diversos obstáculos e ainda carrascos que tornavam a corrida ainda mais dura para os verdes. Violência física e moral. Gritavam palavras de ódio, de desencorajamento, espancavam, jogavam pedras, coisas podres, mas como já falado, essa parte não saía na cobertura dos telões.

Todos podiam ver o que acontecia nas chegadas de todas as pistas, em forma de cobertura espetacular. Era possível ver a grande maioria dos azuis pedirem com delicadeza, educação, calma, tranquilidade, paz, determinação e fé às pessoas elegantes para saírem do caminho e, então, cruzavam felizes a linha de chegada. Apenas alguns poucos chegavam mal humorados e não conseguiam o controle suficiente para seguir as regras e terminavam sendo punidos, mas com toda a delicadeza, afinal, eram azuis, belos, fortes e davam gosto de se ver. Pra dizer a verdade, por serem azuis, muitas vezes nem eram punidos. Afinal, a sociedade é tão beneficiada com gente importante assim, não é verdade?

Ao mesmo tempo era possível ver como a grande maioria dos verdes chegavam descontrolados. Como não conseguiam pedir às pessoas elegantes conforme a regra, com delicadeza, educação, calma, tranquilidade, paz, determinação e fé, logo não eram atendidos. Revoltados, tentavam cruzar a linha de chegada com o uso da força, da violência, do desespero, machucando as pessoas elegantes. Não adiantava muito, pois alcançar a linha de chegada fora das regras, pelo menos para os verdes, significava, no lugar de premiações, duras penas, severas, violentas, dolorosas. Todavia, alguns poucos verdes, pouquíssimos mesmo, conseguiam manter o controle apesar de todas as dificuldades. Conseguiam seguir as regras e cruzar a linha de chegada. Sim, é verdade que algumas vezes mesmo conseguindo o controle para seguir as regras, alguns verdes não conseguiam que as pessoas elegantes quisessem sair da frente. As pessoas elegantes às vezes diziam que um olhar do verde teria indicado uma intenção que poderia significar falta de fé, ou coisa parecida. E davam a punição, devida e indevida. Mas são verdes, não é verdade? Que falta fariam a essa sociedade?

Casa pessoa voltaria a correr no outro dia, mesmo as penalizadas. Cada um voltaria a correr, dia após dia, até os dezoito anos completos, lembra? Voltariam a correr no outro dia, carregando os frutos de suas premiações ou de suas penalidades. Principalmente no caso dos verdes, muitos morriam antes de completar os dezoito anos, seja pelo acúmulo de penalidades das corridas, seja por serem exterminados pelo ódio popular. Isso explico abaixo.

Enquanto assistiam à cobertura espetacular pelos telões, todas as pessoas, inclusive as verdes, achavam que os verdes eram, de fato, pessoas muito más. Afinal é possível ver nos telões como elas são violentas, verdadeiros animais. Os telões mostram que ambos os corredores, o verde e o azul, saem em igualdade de condições, apesar de suas aparências físicas e de saúde, e a chegada é exatamente igual. É óbvio que os verdes são maus e os azuis são bons. Sim, há uns poucos verdes bons e uns menos ainda azuis maus, mas isso é só a exceção. Todavia essa exceção torna óbvio que todo verde poderia ser bom se assim o quisesse, não acha? Se uns conseguem porque todos os demais não conseguiriam? Obviamente porque não se esforçam o suficiente, bando de preguiçosos maus. Enfim, justa essa sociedade é sim, mas só falta exterminar todos os verdes infratores para que seja perfeita. E era isso o que a multidão conversava e repetia e aumentava o coro: Morte aos verdes infratores! Morte aos verdes infratores! Com certeza era a solução para os problemas daquela sociedade. E os próprios verdes que assistiam engrossavam o coro. A cobertura espetacular dos telões e a multidão endossando representavam uma veracidade infalível, cheia de autoridade.

Acontece que alguns verdes conseguiam enxergar a pista dos verdes também, fora dos telões. E se revoltavam contra o que acontecia em seu percurso. Eles gritavam outros sons. Não pediam a morte dos verdes infratores, mas pediam que houvesse punição aos carrascos, conserto dos buracos da pista dos verdes, que houvesse também água, refeições e descanso no caminho, que houvesse palavras de estímulo e ajuda também. Mas esse grito era recebido com vaias, com palavras de ódio que cresciam. A multidão achava sem sentido esse grito destoante. Será que esse povo não consegue enxergar a realidade? Está tão clara na cobertura espetacular dos telões. Deveriam morrer também, junto com os verdes infratores.

Os espancamentos, linchamentos, extermínios dos verdes que infringiam as regras nas chegadas das pistas eram aplaudidos. A multidão se realizava, se regozijava ao ver um verde, depois de violentar as pessoas elegantes, serem agredidos até à morte. Isso! Matem todos! É a solução! É a solução!


Mas o que chamava mais a atenção era que quando corriam duas mães, cada uma com um recém-nascido nos braços, uma verde e uma azul, os dois bebês, o verde e o azul, pareciam mais iguais do que pareceriam quando estivessem próximos aos dezoito anos. Isso se a morte precipitada do verde não viesse impedir a futura comparação.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A morte do meu pai: variações sobre o prazer e o tempo


Ainda no caminho de sentir melhor o chão, após a perda do meu melhor amigo e pai, há pouco mais de um mês, tenho passado estes dias.


Eu achava que conhecia a morte. Mas tenho aprendido que só a conhecemos quando ela chega ao nosso círculo menor de convivência.

Uma experiência que me fez lembrar de Gilgamesh, aquele guerreiro da mitologia mesopotâmica. Ele também só conheceu a morte de verdade quando perdeu o seu único companheiro de batalha, Enkidu.

Enkidu, que havia sido contratado para matar Gilgamesh, termina perdendo a sua condição divina quando experimenta os prazeres humanos com uma prostituta. Perde a sua inocência e condição divina e se torna conhecedor do bem e do mal, e agora um amante dos prazeres humanos. Torna-se também o melhor amigo de Gilgamesh, e seu companheiro de batalha.

Exatamente o comportamento que promove a entrada de Enkidu no mundo dos prazeres humanos é o mesmo comportamento que pode-se julgar como o responsável pelo encurtamento da sua existência.

Assim foi a opção de vida do meu Pai, Abelardo, quando não se permitiu abrir mão de um estilo de vida que lhe proporcionava prazer (isso não impedia e nem se opunha à sua dedicação extrema para promover a qualidade de vida daqueles que estavam ao seu redor). Não gostava de estar em médicos, não ia. Gostava de comer isso e aquilo, comia. Vivia rindo, brincando, enfrentando até os seus maiores problemas sempre com um bom humor gigantesco. Vivia dizendo que se algum dia precisasse viver uma vida tomando remédios, indo a médicos, fazendo dieta alimentar, preferia morrer antes. Assim como preferia morrer antes de qualquer um de seus filhos, netos ou mulher. Não era uma vida que desejava a morte, pelo contrário. Desejava viver muito. Só não aceitava viver de qualquer jeito. Viver muito sim, mas só se for muito bem, era a sua escolha.
Gilgamesh, como eu, perdeu o seu principal companheiro de luta, único na verdade. E se deparou com a morte de verdade pela primeira vez. Mas a inquietação de Gilgamesh o levou a um caminho diferente do de Enkidu. Este havia escolhido a intensidade da vida em detrimento da quantidade de tempo de vida. Mas Gilgamesh iniciava agora sua jornada em busca da imortalidade. Ele queria se livrar do destino do amigo.

E é nesta reação à morte próxima que quando comparo a minha perda com a de Gilgamesh me distinguo. Me firmo ainda mais optando pela intensidade de vida, na vivência do prazer (ao mesmo tempo que luto para ampliar também o prazer de outros), do que na quantidade do tempo de vida. Claro que farei as minhas concessões, buscando um equilíbrio, afinal, se puder ter prazer nessa vida por mais tempo será sempre melhor. Só não aceitarei também me privar de uma vida de prazer só para viver mais. Não me trancarei dentro de casa temendo a violência. Não terei medo de experimentar coisas novas temendo errar. Quero sabor, quero intensidade, quero vida, quero prazer, ter e dar. Afinal, entre morrer aos sessenta como o meu pai, tendo vivido intensamente tanto para si quanto para os seus. Ou morrer aos cem sem nunca ter vivido de fato. Prefiro uma morte que interrompa uma curta vida de intensidade do que uma morte que chega para uma vida já morta há um longo período de tempo.

28/01/2015

Bruno Montarroyos
Mestre em Ciência Política (Relações Internacionais) pela UFPE
Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvimento - D&R-UFPE (CNPq) e do Grupo de Estudos Subalternos, Periféricos e Emergentes - D&R-UFPE
Pastor Batista, membro-fundador da Aliança de Batistas do Brasil
bmontarroyos@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6581290148822998

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Política, questão de fé*


Por Bruno Montarroyos

Quem dirige automóvel sabe. Por mais habilidade que se tenha e por mais que se respeite as leis de trânsito, dirigir não se resume a isto. É preciso confiar que os outros também respeitarão as mesmas leis. Se não confiássemos minimamente nos outros motoristas, não dirigiríamos. Só nos sentimos seguros para trafegar nas ruas, porque acreditamos que os outros não orientarão os seus carros em nossa direção, causando uma colisão, por exemplo. Não daria para dirigir prestando atenção a tudo o que se deve e ainda no comportamento de cada um dos outros motoristas ao volante. Dirigir automóvel é uma questão de fé.

Sou teólogo de formação e a fé é um tema que faz parte do meu universo. Desde a minha entrada acadêmica na Ciência Política como um total ignorante nesta área (continuo me sentindo um ignorante), tenho me deparado com uma realidade: Política também é uma questão de fé, assim como a neutralidade científica na academia. Mas antes disso, vou voltar um pouco e contar a minha experiência no Centro de Mídia Independente.

Sempre fui um sonhador. Desde que fiz uma opção na teologia - opção pelos pobres - tenho dedicado parte significativa do meu tempo e esforços a estudar melhor as causas das injustiças e desigualdades. Percebi que uma educação deficiente aliada a uma concentração de poder no principal meio que informa a população (a TV), era um forte instrumento de opressão, que trabalhava, à semelhança dos sacerdotes bíblicos, em favor do poder econômico. Este último detém também o poder político (direta ou indiretamente), alienando a massa em favor de uma afluência cada vez maior da riqueza de um povo a uma minoria abastada.

Pensei: deveria existir uma mídia independente e buscando na internet cheguei ao Centro de Mídia Independente, onde trabalhei um tempo no coletivo Recife, como voluntário. Assim comecei a ver mais de perto como uma notícia se transforma, da realidade até o noticiário da TV e dos jornais escritos. Através do CMI conheci muita gente, militantes, cineastas, gente comprometida com um mundo melhor, que dá o próprio sangue para isso. Convivi de perto com o MST. A essa altura, minha teologia e vida estavam comprometidas com o pensamento de esquerda, o da heresia, já que quem tem o direito de colocar os rótulos é o poder econômico.

Isso me levou ao Mestrado em Ciência Política. Essa ânsia de conhecer melhor as raízes das desigualdades. Mas me deparei com a realidade de que política é também questão de fé.

Por mais que tenhamos o zelo de nos informar de todos os ângulos sob os quais uma notícia é veiculada. Refletir, sem presunção de ser portador da verdade, os argumentos disponíveis em cada "time" apaixonado por suas próprias ideologias. Percebo que em algum momento será preciso fazer escolhas. Escolher que fontes julgarei mais confiáveis, sejam elas pessoais ou institucionais. Isto porque as nossas limitações não nos permitem a onisciência ou a onipresença, de forma que sempre dependeremos de informações de terceiros. E parte significativa dessas informações trafegam por ambientes restritos a poucos terceiros. Informações que jamais chegarão a público, inclusive. E aí haverá terceiros bem estudados, tentando juntar as peças e tecer as suas interpretações. Haverá também terceiros pagos para usar os títulos de suas credibilidades em declarações de informações pré-acordadas para o atendimento de interesses específicos. E como há terceiros para todos os lados, precisaremos, em algum momento, optar quais terceiros nos transmitem mais confiança.

Quando lembro de John Stuart Mill, em sua obra sobre a liberdade, percebo que há muito o que aprendermos. Ele diz que todo mundo se reconhece falho, mas que o difícil é reconhecer que uma certeza minha de hoje possa ser um exemplo dessa falibilidade. Reconheço-me falho tão somente pelo meu passado, pelo que já se tornou insustentável permanecer como certeza. Dificilmente pensamos na possibilidade da falibilidade em uma certeza atual. E isso limita a nossa capacidade de ouvir, de verdade, de querer aprender com o diferente, de buscar no diferente algo que possa completar, contrariar ou mesmo reforçar uma certeza minha. E isso empobrece o nosso pensar. Chamar de imbecil, idiota, ingênuo, etc, o diferente, limita a nossa capacidade de considerar outros horizontes e considerar a nossa já reconhecida falibilidade.

Saber que política é também questão de fé é nos dar a possibilidade de permanecermos fiéis ao que cremos, sem precisar desrespeitar o direito do outro de assumir e viver outra fé. No final das contas, exceto por quem se beneficia com a opressão, injustiça e desigualdade, a maioria de nós quer o mesmo fim: justiça, igualdade, amor. Mas estamos olhando com óculos e por ângulos diferentes, formados pelas experiências de vida que tivemos, pelas leituras e vivências. Muitas vezes estamos vendo o mesmo elefante, ora como cauda, ora como tromba. Deixemos pois de gritar, apenas: cauda, cauda... ou tromba, tromba. E procuremos, humildemente, nos interessar por conhecer os outros lados.

* Publicado originalmente em novembro de 2013 no facebook

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Economia para quem?


Por Bruno Montarroyos

A parábola abaixo faz um reducionismo de toda uma nação a uma pequena comunidade. Além disso, não é uma parábola escrita por um economista, logo não se deve esperar conhecimentos maiores do que os de um mero curioso amador nesta área. Apesar do pecado reducionista e da limitação dos conhecimentos econômicos do autor, pode facilmente ser o ponto de partida para o caminho de uma compreensão mais complexa, como merece um sistema de relações tão complexas como um país. Vamos a ela:

Era uma vez um fazendeiro que descobriu que em suas terras havia ouro. Resolveu, então, contratar nove famílias para trabalhar em suas terras. A contratação se deu da seguinte forma:

- Uma das nove famílias seria a governanta do empreendimento, recebendo um salário familiar de R$ 15.000,00;
- Duas das nove famílias seriam supervisoras e receberiam cada uma o salário familiar de R$ 1.500,00 cada;
- As outras seis famílias seriam as operárias e receberiam o salário familiar de R$ 200,00 cada.

A empreitada deu certo e rendiam ao fazendeiro, depois de retirados os custos com os trabalhadores, o lucro de R$ 5.000.000.000,00 (5 bilhões de reais) por ano.

A comunidade tinha, então, um PIB de 5 bilhões de reais.

Mas na verdade uma outra fazenda também operava com os mesmos números, tudo igual.

Fazendas 1 e 2 – Ano 1

Qtd. de Famílias
Renda Familiar
1
R$ 5.000.000.000,00
1
R$ 15.000,00
2
R$ 1.500,00
6
R$ 200,00

PIB: 5 bilhões

No segundo ano cada fazenda optou por diferentes políticas em seus negócios:

O primeiro fazendeiro viu que poderia ter mais rendimentos caso aumentasse o trabalho de seus funcionários. Achou também que os seus salários estavam altos e que se os reduzisse poderia tê-los ainda mais comprometidos com o trabalho, pois dependeriam ainda mais dele.

Manteve o salário da família governanta, de R$ 15.000,00, abaixou o salário das supervisoras para R$ 800,00 cada e o das operárias para R$ 100,00 cada, dobrando as horas de trabalho.

Com o aumento do trabalho foi possível alcançar um rendimento de 7.000.000.000,00 (7 bilhões de reais) neste ano. O PIB subiu de 5 para 7 bilhões, ou seja, crescimento da economia da ordem de 40%, coisa de louco. Qualquer Mirian Leitão diria que se trata de um crescimento para ninguém botar defeito.

Fazenda 1 – Ano 2

Qtd. de Famílias
Renda Familiar
1
R$ 7.000.000.000,00
1
R$ 15.000,00
2
R$ 800,00
6
R$ 100,00

PIB: 7 bilhões (Crescimento de 40% ano)

O segundo fazendeiro decidiu diferente. Ele achou que poderia melhorar a vida de seus trabalhadores. Aumentou o salário da família governanta para R$ 17.000,00, das supervisoras para R$ 2.000,00 cada e das operárias para R$ 1.000,00 cada. Além disso, reduziu à metade a jornada de trabalho para todas as famílias. Claro que com essas medidas ele passaria a lucrar menos. E os seus rendimentos foram de 5 para 3 bilhões de reais. A comunidade experimentou uma contração de 40% em sua economia, desastre total segundo as Mírians Leitões por aí.

Fazenda 2 – Ano 2

Qtd. de Famílias
Renda Familiar
1
R$ 3.000.000.000,00
1
R$ 17.000,00
2
R$ 2.000,00
6
R$ 1.000,00

PIB: 4 Bilhões (Contração da produção de 40% ano)

Pergunto: Se a sua família não fosse a família do fazendeiro e nem a família governanta, mas fosse uma das oito demais famílias, dentre as dez da comunidade, qual dessas comunidades você gostaria de habitar? A que está crescendo a uma taxa de 40% ao ano ou a que está com uma contração de 40% ao ano? Preferiria ter a renda familiar diminuída de R$ 1.500,00 para R$ 800,00, de R$ 200,00 para R$ 100,00 na comunidade de crescimento econômico? Ou preferiria ter a renda familiar aumentada de R$ 1.500,00 para R$ 2.000,00, de R$ 200,00 para R$ 1.000,00 na comunidade que o PIB contraiu em vez de crescer?

E aí, o que importa mesmo é a taxa de crescimento do país ou a forma como a renda está distribuída neste país e as mudanças na qualidade de vida da população? O que acha? Acha que a nossa imprensa se preocupa mais com que tipos de dados, os meramente econômicos ou os socioeconômicos?

domingo, 27 de julho de 2014

Ditacia e Democradura

Por Bruno Montarroyos

       Certo casal tinha três filhos da mesma faixa etária e de mesmo porte. À hora das refeições, o primeiro punha em seu prato 80% da comida disponível na panela. Os 20% da comida restante era igualmente distribuído pelos demais membros da família: o pai, a mãe, que se chamava Democradura, e os dois irmãos do primeiro que se serviu. Os pais tentaram convencê-lo a ter mais consciência, mas sem sucesso. Com o tempo, os irmãos subnutridos até tentaram impedir o irmão egoísta e obeso a continuar cometendo tamanha injustiça. Tentaram se servir antes dele, mas estavam tão fracos que eram jogados longe pela sua força.

Alguém que soube o que estava acontecendo advertiu os pais: - Vocês deveriam estabelecer o limite da comida que ele pode colocar no prato. Mas os pais o questionaram: Isso não seria privar-lhe de liberdade? A liberdade de poder comer o quanto quiser e conseguir? Não seríamos ditadores? Além disso, se ele consegue, pela sua própria força, continuar fazendo isso e seus irmãos não conseguem o mesmo, logo, ele deve merecer o pagamento pelos seus esforços. Se os irmãos dele se esforçarem, chegarem à panela primeiro que ele, conseguirão também fazer o mesmo. Por enquanto não estão se esforçando. Um dia, Acreditamos que esse irmão mais forte vai estar tão satisfeito, que naturalmente vai sobrar mais comida para seus irmãos.

Em uma outra família, de igual formação, onde estava ocorrendo exatamente a mesma situação, e onde a mãe se chamava Ditacia, os pais intervieram e não mais permitiram a divisão desigual e injusta. O irmão egoísta revoltou-se e saiu gritando na rua: - Os meus pais me tiraram a liberdade até de comer. Não posso me servir como quero; E as pessoas na rua ficaram revoltadas com a notícia, e diziam: Que pais autoritários! que ditadores!

E assim seguiam as duas famílias: A primeira família, onde um membro estava obeso e quatro subnutridos. Esta família tinha fama de democrática. E a segunda família, a que todos estavam bem alimentados, mas que tinha a fama de viverem uma ditadura. Tanto que um chefe de uma terceira família se interessou de encontrar outras famílias que o apoiassem na causa do irmão que gritava na rua clamando por justiça. Eles iriam invadir a casa para estabelecer a democracia. O chefe desta terceira família iria também aproveitar o ensejo para se apropriar se uma vaca leiteira da família que seria o alvo da “ajuda”. Essa vaca ajudaria muito a sua própria família, pois o leite é um item que mais esta tem carecido. Mas o seu interesse pela vaca ele não precisava expor para ninguém, pois precisava convencer a todos que o motivo da invasão era salvar aquele irmão que está sendo privado de sua liberdade.


Tal contexto dividiu a opinião de muita gente. Juntaram-se muitos ao chefe da terceira família e criaram o movimento dos defensores da democracia, da liberdade e da família. Outros, olhavam para aqueles quatro membros subnutridos da primeira família, e tendo-os ouvido e ouvido também os membros da segunda família, aquela do irmão obeso que gritou na rua, lutavam por uma distribuição melhor e mais justa. Os pais da primeira família continuavam acreditando na justiça de suas ações e jamais tirariam a liberdade de seu filho obeso, por seu próprio mérito, conseguir uma porção maior de comida. Os seus dois irmãos continuaram fracos e sentindo-se injustiçados. Começaram até a fazer alguns saques na rua para tentar conseguir um pouco do que lhes faltava. O obeso da segunda família continuava ganhando adeptos, junto com o chefe da terceira família, para estabelecer a democracia em cada vez mais lares afetados pela ditadura. Esta parceria serviu-lhes bem, comida em abundância ao obeso e novas vacas leiteiras ao lar do chefe da terceira família. A parceria deu tão certo, que já não precisavam eles mesmos ficarem tentando “fazer a cabeça” dos membros de outras famílias. Compraram canais importantes de TV, jornais, revistas, formadores de opinião, educadores e muito mais e conseguiam chegar com as notícias que queriam, do jeitinho que queriam em cada casa.

domingo, 4 de maio de 2014

Capitalismo para os outros, mas comunismo para os meus

Tente imaginar a cena: Um adolescente, negro e forte, puxou com violência a bolsa daquela velhinha indefesa, e saiu correndo, deixando-a apavorada e caída no chão. Imaginou? Que sentes? Imaginou a cena? Tentou fazer o exercício de se sentir parte da cena? E aí, quais os seus sentimentos pelo garoto da cena?

Agora eu irei acrescentando ou alterando algumas informações e você continuará fazendo o exercício. A velhinha da cena é, na verdade, sua mãe, já idosa. (caso não tenhas referência de mãe, substitua por uma pessoa a quem ame extremamente, pode ser sua filha, por exemplo). E agora, quais os seus sentimentos pelo garoto da cena? Continuam os mesmos? Há diferenças pelo menos na intensidade dos sentimentos? Certo, sigamos…

Que a velhinha volte a ser uma pessoa desconhecida. Mas você teve a informação de que o adolescente que fez isso, o fez porque estava desesperado de fome e, como ninguém lhe deu comida, ele viu na bolsa da velhinha a possibilidade de comprar comida. Isso alterou alguma coisa nos seus sentimentos?

Bem, além disso, você descobre também que esse adolescente foi pego na próxima esquina e que estava sendo espancado por outras pessoas que presenciaram o crime. Enquanto o espancavam, ele gritava que estava com fome, precisava comer, que não tinha ninguém na vida, que fora abandonado pelos pais. Mudou algo nos seus sentimentos?

Ainda depois, já depois de o adolescente morto, você descobre que ele era seu filho (você, pai ou mãe deste adolescente, pode substituir a cor inicial do adolescente por sua própria cor). Foi um filho que você já estava sofrendo há anos com o seu desaparecimento. Ele tinha apenas dois anos à época e se perdeu por causa da sua negligência para só agora ser reencontrado por você, nessas condições. Passou por várias famílias pobres, moradores de rua, sofreu violências, maus tratos, e por isso, resolveu tentar a vida sozinho, ainda criança. Mas ninguém olhava para ele como gente. O olhavam como marginal, como alguém que estava só esperando o momento de atacar. E como era difícil para aquela criança ser olhada como marginal todo o tempo. Não lhe davam comida, nem teto, nem carinho, nem ouvidos. Lei? direitos? Não havia sequer uma dessas coisas que lhe pudesse alcançar. Ora, mas se não havia lei que o amparasse, deveria haver, em sua compreensão, alguma que lhe fosse necessário obedecer? E a sua última cena fora aquela, se vendo entre a possibilidade de morrer de fome ou de procurar, em um lugar onde suas forças poucas o permitissem, uma possibilidade de sobreviver um pouco mais. E foi assim que usou todas as suas forças para puxar de vez a bolsa da velhinha para depois tentar comprar comida, já que o dinheiro nesse mundo vale muito mais do que a sua história de vida, do que a sua própria vida. E aí, saber que aquele adolescente da história inicial era o seu filho perdido, que lhe custou tantas lágrimas, e saber que agora estava morto, mudou os seus sentimentos em relação ao adolescente? Saber que a sua negligência foi, em grande parte, a causa de tudo aquilo mudou alguma coisa na sua cabeça também?

Pois é, apesar de fictícias, essas suposições tem muito a ver com a realidade. Uma realidade fruto de nossa negligência como cidadãos, por exemplo. Condenar é sempre mais fácil. Querer aplicar justiça severa a quem nunca foi alcançado pela justiça, por exemplo. Nos fala sobre quem dá a notícia, o que informa e o que omite, seu recorte, interfere diretamente nas minhas interpretações. Várias coisas mais. Vá pensando...

Quando um hospital deixa de executar algum procedimento em um paciente, deixando-lhe morrer, para não ter prejuízo financeiro, esse hospital está sobre orientações capitalistas, onde o dinheiro é o centro. Para o dono do hospital o seu prejuízo financeiro é mais importante do que a vida de desconhecidos. Se um procedimento indica prejuízo é porque não está pago. Se não está pago, não é devido. Coisas de meritocracia. Ele é um capitalista? Mas se a mãe dele for o paciente, em um outro hospital concorrente, ele espera desse hospital um trato socialista/comunista para com sua mãe e não um trato capitalista. Logo, ele é capitalista para os outros, mas comunista para com os seus. A diferença, então, se você parar para pensar, entre um capistalista e um comunista ou socialista, é que aquele primeiro deseja o comunismo/socialismo apenas para os seus e os últimos o desejam para todas as pessoas.

Engraçado é ouvir, ainda nos dias de hoje (e as experiências históricas negativas de comunismo não me servem de justificativa, pois tenho visto resultados muito mais cruéis dos nossos capitalismos), que os termos “comunista” ou “socialista” sejam vistos por muitos como perjorativos ou até usados em forma de xingamento.

Os exemplos fictícios acima conseguem expressar bem a realidade de coisas que acontecem muito:

- Os nossos interesses moldam as nossas percepções e inclusive os nossos preconceitos. É fácil condenar alguém sem conhecer a sua história de vida. Mais fácil ainda quando esse alguém não é “dos nossos”;

- Até o mais severo capitalista deseja que os seus sejam tratados por comportamentos socialistas ou comunistas. Não querem que as pessoas de fora, principalmente em momentos críticos, considerem o dinheiro mais importante do que a vida dos seus.

Dedico esses pensamentos a qualquer pessoa que suspeite me incomodar quando me chama de “comunista” ou “socialista”. E respondo: Com muita paz na consciência.

Bruno Montarroyos

sábado, 8 de março de 2014

Quem são elas? Quem elas pensam que são?

Na antiguidade já foram consideradas deusas. Isso porque, diferente dos homens, tinham o poder misterioso de gerar vida. A capacidade de ter dentro de si a formação de um novo ser, a quem apresentaria o mundo externo já, assim, completamente formado, à sua imagem e semelhança. Tal poder misterioso era visto como um indicador da sua divindade.

Na mitologia grega, as deusas do olimpo eram igualmente temidas e respeitadas, as cinco entre os doze ou as seis entre os quatorze citados como parte do dodecateon. Entre os seis deuses de primeira geração, elas eram em três.

Em toda a história da raça humana já foram e têm sido guerreiras e pacifistas, sujeitos e objetos, vítimas e cuidadoras, mães e órfãs, livres e escravas, conhecedoras e analfabetas, ousadas e reprimidas. Em cada contexto específico, mais umas dessas coisas que outras.

Quando o assunto é a casa, ainda hoje o título “Dona de casa” ainda aparece como correlato feminino do título masculino “Chefe de família”. Enquanto ele é o cabeça do lar, responsável pela logística econômica, intelectual e decisória, ela é a responsável direta pelos serviços domésticos e educação dos filhos. Acumula, assim, a função de babá, cozinheira, faxineira, lavadeira, professora e muito mais. E desde a mais tenra infância já vai aprendendo o seu lugar. Muita coisa já mudou nesse sentido, mas, ainda hoje, mesmo as pessoas mais libertas pelas conquistas do feminismo, mantêm sempre incrustado em seu ser algum traço deixado por toda uma história de machismo injusto.

Se trabalho é o assunto, é já bem constatado que, apesar de todos os avanços, as mulheres ainda são remuneradas por valores bem inferiores aos homens quando assumem os mesmos cargos. E à desigualdade nas remunerações, somem-se, igualmente, o reconhecimento, o respeito, as oportunidades, a estabilidade, etc.

Se mudarmos o assunto e começarmos a falar de sexo, aí é que a coisa pega. O homem pode tudo, sempre pôde. E à mulher resta a condição de reprimida, de agente passivo, de objeto, de timidez, de silêncio. Qualquer indicação de ousadia, de vontade própria, de expressão de desejo ou necessidade de prazer, será interpretada como constatação de desvio perverso do seu comportamento. Será nomeada vadia, puta, fácil, ou qualquer outro desses nomes, usados em tom depreciativo, que são os equivalentes femininos para os termos masculinos, usados em tom enaltecedor. Às vezes até o mesmo termo ganha uma interpretação diferente em cada gênero.

Tarado: (não o de verdade, mas o termo usado para um homem normal): Homem que expressa a sua sexualidade de forma intensa, homem de sexualidade forte, que gosta muito de sexo, etc.

Tarada: Mulher que “dá” pra todo mundo, puta

Devasso: Homem que “pega” muitas mulheres, garanhão, gostosão, fodão.

Devassa: Mulher que “dá” pra todo mundo, puta.

Pegador: Pega todas as mulheres, garanhão, o bom, o gostosão.

Pegadora: Mulher que “dá” pra todo mundo, puta.

Homem que diz “comi Fulana, Sicrana e Beltrana”: Herói, garanhão, viril, sexualidade forte, etc.

Mulher que diz “dei para Funano, Sicrano e Beltrano”: Mulher que “dá” pra todo mundo, puta.

Puta: Nas definições acima não é a mulher que vende sexo, mas um indicativo de que a mulher não presta, é inferior, não é gente, só serve para sexo e sexo sem respeito nem carinho, é quase bicho, não merece ser respeitada, muitas vezes nem como ser humano, muitas vezes merece até ser violentada, no corpo e na alma.

Puto: Homem que não é homem, gay, portanto merece os mesmos preconceitos e violências que uma mulher, até mais.

 

Bem, são só alguns exemplos. Talvez até você, liberto ou liberta pelo nosso feminismo contemporâneo, vez por outra ainda se flagre pensando parecido. É uma pena, mas é a nossa realidade ainda.

Se você é homem, aproveite este dia de hoje para pensar: “quem são Elas?”. O que fariam sem elas? Como viveriam? Como as têm tratado? Como você as enxerga? Não apenas aquelas que são as “outras” da tua vida. E com “as outras” quero dizer aquelas que não fazem parte da tua vida, que não se relacionam contigo. Para essas, acredite, é mais fácil levantar bandeiras, defender direitos, lutar, expressar opiniões libertadoras em favor delas. Mas quero, principalmente, que pensemos nas nossas mulheres, “as umas”, essas que estão ao nosso redor, que convivem conosco. Começando pela sua mãe, avó, esposa, filhas, tias, cunhadas, noras, estendendo-se às colegas de trabalho, de estudo, etc. Quem são elas?

Você é mulher? Então quero te desejar muita liberdade. Espero que você saiba quem é. Espero que o contexto machista não tenha obscurecido a tua visão do próprio ser. Espero que saiba e aja sabendo que és tão humana quanto qualquer homem. Desejo a você a lembrança constante de que, seja em casa, no seu lar, seja no seu trabalho, na rua, na escola, no comportamento, no sexo, na linguagem, nos  direitos e deveres, és tão humana quanto qualquer homem. E nunca aceite nem reproduza um pensamento ou comportamento que interprete como mal um ato seu que, se fosse ato de um homem, seria interpretado como bom. Se indica humanidade para ele, indica para você também.

Tenho muitas mulheres. As cinco principais são minha mãe Ozinete, minha esposa Cristiane, minhas filhas Hanna, Sofia e Lis. Quando me pergunto “Quem são elas para mim?”, consigo resumir dizendo que são os maiores tesouros da minha vida. São seres e não posses. São sujeitos e não objetos. São capazes de liderança, de decisões. São autônomas e possuem vontades e desejos próprios. Mesmo carregando cicatrizes de uma formação social machista, tento enxergá-las com um viés de igualdade. E desejo que sejam mulheres libertas, sem medo, sem culpa.

A todas as mulheres, parabenizo pelas conquistas e desejo muito mais. Desejo liberdade, plena e portadora do prazer de viver. Desejo transformação progressiva no mote “quem elas pensam que são?”. Que pensem, reflitam como são vistas (realidade), quem têm sido (sua história), quem devem ser (seu Ser). Que se empoderem com ousadia, sem medo, sem culpa. Que desconstruam, primeiro o interior de si mesmas, e depois todo o universo exterior onde coexistem.

Perdoem-me as palavras fortes usadas, talvez incoerentes com um texto de homenagem, mas a homenagem é sincera, do meu jeito.

Quem é você, mulher? Quem você pensa que é?

P.S. Muitas das comparações usadas, principalmente no assunto sobre a sexualidade, não expressa juízo de valores, nem no julgamento conferido aos homens nem às mulheres, mas simplesmente traduz o pensamento que domina na interpretação para cada gênero. Que as lutas das mulheres, ao exigir igualdade, continue não reproduzindo algumas superficialidades predominantes no pensamento masculino.
 

08 de março de 2014

Bruno Montarroyos

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Aprendendo a ver com Mônica e Cebolinha

 

A tarefa dizia mais ou menos assim: "Com a ajuda de um adulto, observe a cena abaixo, diga o que você consegue ver para que o adulto escreva nas linhas abaixo da cena".

Era a tarefa da escola de Sofia, minha filha do meio (4 anos). A cena era um desenho de Cebolinha e Mônica, sentados em um sofá, enquanto assistiam à televisão. Cebolinha demonstrava medo e Mônica comia pipoca.

- Entendeu, Sosô? Como você já escreve, então qual o adulto que vai escrever?

- Nenhum, respondeu ela, eu mesma vou escrever.

- Muito bem, então, o que você vai escrever?

- Mônica, Cebolinha, Sofá, Televisão…


Parei um pouco para pensar como melhor estimular a minha filha. Disse a ela que essa era uma forma sim, de responder, mas que ela podia ver mais coisas. Então comecei a falar em tom de contador de histórias, dizendo: - Veja só (fazendo um quadro com as mãos, afastado, olhando em sua direção), o que eu estou vendo nesta cena: Em uma sala, Sofia está sentada à mesa, para fazer a sua tarefinha, segurando a mamadeira da sua irmã, Lis, enquanto dá gargalhadas (as gargalhadas já eram pela palhaçada do pai-palhaço).

Depois de estimulá-la um pouco mais, a deixei escrevendo (ela não queria que eu visse enquanto não terminasse) e o texto final ficou mais ou menos assim: "MONICA E CÉBOLINHA ESTÃO ASISTINDO TELEVISÃO CEBÔLINHA ESTA CON MEDO DEVE SER UN FIUMI DE TERROR MONICA ESTA COMENDO PIPOCA."

Ajudei Sofia a corrigir os pequenos erros ortográficos, mas não pude deixar de perceber o resultado do estímulo, pois além de descrever o que está na cena, ela conseguiu ir além, pois a afirmação que "deve ser um filme de terror" está fora da cena.


Pensando no fato, não deixo de lamentar a falta de estímulo à atividade docente no Brasil. Quantos adultos, eleitores, cidadãos, temos hoje formando a nossa população brasileira, que só conseguem enxergar os elementos da cena, sem fazer nenhum tipo de análise de conjuntura? Eles vêem a Mônica, o Cebolinha, o sofá, a TV, mas não foram estimulados a enxergar o que acontece na cena, como as personagens interagem, como o ambiente é alterado pelo movimento das personagens.

Quem não consegue interpretar a própria visão, submete-se às interpretações alheias. Eu poderia dizer à Sofia: - Mas você não consegue ver que Cebolinha está lambendo os dedos e rindo e que Mônica está comendo jujubas? O filme deve ser uma comédia. É mais ou menos isso o que uma imprensa pode fazer para manipular gente que não foi estimulada à interpretar de forma autônoma as cenas que se colocam diante de si.

Em um contexto desse, por exemplo, poderia um dia acontecer de uma notícia boa ser dada como ruim. Imagina se um dia, quando acontecesse de em um País, de a conjuntura permitir combater melhor a corrupção. Imagina se isso acontecesse. Seria a primeira vez que a corrupção apareceria gigante, já que estaria se permitindo tratar. A notícia boa poderia ser dada como ruim, não acha? Poderiam dizer que nunca houve tanta corrupção. Imagina se um dia a classe mais pobre estivesse um pouco mais capaz de enxergar, se houvesse mais gente bem informada que pudesse lutar, que as pessoas sentissem necessidade não mais pelo pão que faltava, mas por coisas maiores como educação, saúde, etc. A notícia boa do povo estar mais capaz de exigir os seus direitos e estarem fazendo isso, poderia ser dada como uma notícia ruim de que o povo nunca esteve tão insatisfeito com o governo.

Não estou querendo dizer que isso acontece, mas poderia acontecer um dia, não acha? E para as pessoas que só conseguem enxergar a Mônica, o Cebolinha, o Sofá e a TV, poderia ser mais difícil de enxergar o filme de terror e acharem que era só uma comédia.
Bruno Montarroyos
Mestre em Ciência Política (Relações Internacionais) pela UFPE
Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvimento - D&R-UFPE (CNPq)
Pastor Batista, membro-fundador da Aliança de Batistas do Brasil
bmontarroyos@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6581290148822998

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vida Privada


Privacidade, como é bom, não é mesmo? Minha casa, meu quarto, meu carro, minha sala no trabalho, meu email, minha própria conta em uma rede social na internet.


Ah, vida privada, quanta vida há na tua privada? O que restou e restará da vida comum, da comunhão, se o que está na moda é a privada, da privação.


Na comum o bem maior é o outro, a relação. Na privada, o retorno da exclusividade infantil do "Eu" é que se afirma. Personalização, promoção pessoal, torne-se rico, faça seu primeiro milhão, troque o seu carro, compre a última invenção, adquira a nova versão, seja um empreendedor, compre, assine, troque.


A privacidade é tudo. Priva a cidade de praças, priva a cidade de parques, priva a cidade de mobilidade urbana. Priva a cidade de gente. Como está privada a nossa vida. Privada de direitos sociais, privada de empatia, de solidariedade, de altruísmo, engajamento social, de lutas por interesses comuns, esses da comunhão.


Reclamamos de trânsito, mas continuamos sonhando com um carro que dirigiremos sozinhos. Reclamamos da falta de segurança, mas não queremos estar nas ruas, para torná-las mais seguras. Se cada 50 carros do trânsito fossem substituídos por um ônibus, teríamos um deslocamento mais flúido. Se voltássemos às ruas em vez de superlotarmos os shoppings ou estarmos em casa com medo, assistindo o show do temor na TV, teríamos ruas cheias de gente e, consequentemente muito mais seguras, sem necessidade de aumento de efetivo policial. Além de estamos em um ambiente muito mais saudável.


Porque não estamos nas ruas? Porque achamos perigoso. É melhor ficar dentro de casa, assistindo televisão. Melhor ir para o trabalho de carro, mas não precisar estar na rua e nem usar um transporte público ruim, por isso há muita gente sonhando com o próprio carro. Melhor ir para um shopping center do que se arriscar nas ruas. E assim vivemos na nossa vida, não mais de comunhão, vida comum, mas vivemos na outra vida, essa privada, e na privada vivemos, trancados, em casa, no trabalho, em um carro ou mesmo trancados na tela de um celular, mesmo quando há gente de verdade ao nosso lado. Ah, e não venha me dizer que as relações dentro de um shopping são iguais às de uma praça. Na praça as pessoas se conhecem, conversam, estão lá para o encontro. No shopping as pessoas nem se olham e estão lá para uma outra atração, que não é o outro, mas as coisas que podem comprar e consumir.


Não é na vida comum que temos investido. Temos investido na privada. Isso é muito interessante para um sistema capitalista. Melhor que cada pai e cada mãe compre o próprio arsenal de brinquedos para os seus filhos do que terem um parque ou praça pública onde eles brinquem com os filhos dos vizinhos. Na privada estamos colocando o foco das nossas relações. Cada um procure o seu próprio meio de melhorar o seu deslocamento até o trabalho, de oferecer lazer aos filhos.  Cada um por si.


Procure o Shopping mais próximo da sua casa. Lá você pode encontrar tudo. Vá a um super hiper mega mercado, pois lá existe variedade, conforto e preço. Enquanto isso, concentramos mais e mais as riquezas. Quebramos os pequenos comerciantes e enviamos cada vez mais os nossos salários a quem já muito possui. Mas que importa que haja condições de exploração desumana de força de trabalho? Desde que eu não veja e que possa comprar mais barato.


Estou aqui, nos meus pensamentos, tentando identificar quão privada está a minha vida e buscando meios de me reeducar. E você, consegue enxergar o quanto a sua vida está privada?